aqui ficam os poemas que foram declamados a 19 de março.
São belos... deliciem-se!
As palavras também brincam
fazem cada coisa louca
saltam na ponta da língua
são estrelas no céu-da-boca.
Dão pontapés no ditado
mas ditam cartas de amor
contam histórias de fadas
jogam no computador.
Às vezes, fingem que dormem
apenas para enganar
se ficam presas nos livros
desejosas de falar.
Não tem asas mas voam
e sobem como um balão
quando pela nossa voz
se transformam em canção.
Toca piano, toca a cantar
com as palavras nós vamos voar.
Luísa Ducla Soares,
“Brincar com as Palavras”
|
Aquela
nuvem
parece um cavalo…
Ah!
Se eu pudesse montá-lo!
Aquela?
Mas já não é um cavalo, É uma barca à vela.
Não
faz mal.
Queria embarcar nela.
Aquela?
Mas já não é um navio, é uma torre amarela a vogar no frio onde encerraram uma donzela.
Não
faz mal.
Quero ter asas para a espreitar da janela.
Vá,
lancem-me no mar
donde voam as nuvens para ir numa delas tomar mil formas com sabor a sal – Labirinto de sombras e de cisnes No céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal…
José Gomes Ferreira
“Aquela Nuvem”
|
Vi de repente
o sol brilhar no charco,
as ervas altas
a curvarem-se em arco
para dar passagem
a invisível barco.
Que estranha aragem
de repente no charco
dizia a viagem
que não era do barco?
E de repente eu vi
o sol a estremecer
e as ervas altas
a curvarem-se em arco
para dar passagem
à manhã a nascer.
Maria Alberta Menéres,
“De repente”
|
Sou
o pássaro que canta
dentro da tua cabeça, que canta na tua garganta, que canta onde lhe apeteça.
Sou
o pássaro que voa
dentro do teu coração e do de qualquer pessoa (mesmo as que julgas que não).
Sou
o pássaro da imaginação
que voa até na prisão e canta por tudo e por nada mesmo com a boca fechada.
E
esta é a canção sem razão
que não serve para mais nada senão para ser cantada quando os amigos se vão
e
ficas de novo sozinho
na solidão que começa apenas com o passarinho dentro da tua cabeça.
Manuel António Pina
“O pássaro da cabeça”
|
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar. É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.
Eugénio de Andrade
“É urgente o amor”
|
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo». «Amigo» é um sorriso De boca em boca, Um olhar bem limpo, Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, Um coração pronto a pulsar Na nossa mão! «Amigo» (recordam-se, vocês aí, Escrupulosos detritos?) «Amigo» é o contrário de inimigo! «Amigo» é o erro corrigido, Não o erro perseguido, explorado, É a verdade partilhada, praticada. «Amigo» é a solidão derrotada! «Amigo» é uma grande tarefa, Um trabalho sem fim, Um espaço útil, um tempo fértil, «Amigo» vai ser, é já uma grande festa! Alexandre O'Neill
“Amigo”
|
Esta é a Cidade, e é bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira, freme, crepita,
ziguezagueia e flutua.
Freme como a sede bebe
numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre concebe.
Treme e freme, freme e treme,
friorento voo de libélula
sobre o charco imundo e estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido orgânico
que não seca nem coagula,
que a si mesmo se estimula
e vai, num medido pânico.
Aperfeiçoo a focagem.
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de água.
Tanto sonho! Tanta mágoa!
Tanta coisa! Tanta gente!
São automóveis, lambretas,
motos, vespas, bicicletas,
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais gente,
gente, gente, gente, gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem descança,
um rio que no mar se lança
em caudalosa corrente.
Tanto sonho! Tanta esperança!
Tanta mágoa! Tanta gente!
António Gedeão
“Esta é
a cidade”
|
As
pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas Porém são capazes De comer galinhas O dinheiro cheira a pobre e cheira À roupa do seu corpo Aquela roupa Que depois da chuva secou sobre o corpo Porque não tinham outra O dinheiro cheira a pobre e cheira A roupa Que depois do suor não foi lavada Porque não tinham outra «Ganharás o pão com o suor do teu rosto» Assim nos foi imposto E não: «Com o suor dos outros ganharás o pão» Ó vendilhões do templo Ó construtores Das grandes estátuas balofas e pesadas Ó cheios de devoção e de proveito Perdoai-lhes Senhor Porque eles sabem o que fazem Sophia de Mello Breyner Andresen
“Pessoas Sensíveis”
|
Aparelhei
o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura, O que importa é partir, não é chegar.~
Miguel Torga
“Viagem”
|
"Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu, Que ficaste insensível e gelada? Que todo o teu perfil se endureceu Numa linha severa e desenhada? Como as estátuas, que são gente nossa Cansada de palavras e ternura, Assim tu me pareces no teu leito. Presença cinzelada em pedra dura, Que não tem coração dentro do peito. Chamo aos gritos por ti — não me respondes. Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio. Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes Por detrás do terror deste vazio. Mãe: Abre os olhos ao menos, diz que sim! Diz que me vês ainda, que me queres. Que és a eterna mulher entre as mulheres. Que nem a morte te afastou de mim!" Miguel Torga |
Sem comentários:
Enviar um comentário